Alfabetização em tempos de pandemia: uma perspectiva realista esperançosa

Crédito da foto: Aline Leão



Isis Nogueira


“O otimista é um tolo. O pessimista, um chato.

 Bom mesmo é ser um realista esperançoso.”

 Ariano Suassuna

 

    Vamos aos fatos. Temos motivos para nos preocuparmos com a alfabetização das nossas crianças. Nunca foi simples, num país como o Brasil, garantir que a qualidade de ensino fosse acessível a todos. Passamos muito tempo lutando para, primeiramente, garantir que todas as nossas crianças estivessem dentro da escola, e, depois, buscando maneiras para que as mesmas permanecessem dentro dela. Programas de Formação de Professores Alfabetizadores foram ao longo do tempo revelando seu valor e hoje não é mais novidade que todas as crianças, independentemente da classe social na qual estão inseridas, aprendem da mesma maneira (em ritmos diferentes, isso sem dúvida). 

    O que faz com que as crianças das classes mais favorecidas economicamente avancem em passos mais largos é a oportunidade de participarem ativamente, desde muito cedo, de uma cultura letrada. Em tempos de pandemia, quem já tinha pouco acesso à cultura letrada em geral, e isso inclui os meios digitais, são aqueles cujas famílias mais têm sofrido para garantir a sobrevivência e, portanto, acessar e acompanhar aulas on-line se torna a última das prioridades. 

    Não resta dúvida que quando as aulas presenciais forem retomadas será necessário reforçar as práticas diagnósticas e oferecer um programa intensivo de reforço escolar para garantir que todas as crianças sejam alfabetizadas na idade certa. Além disso, (re)nasce aqui uma oportunidade (há muito tempo urgente, inclusive) de repensarmos o currículo escolar. 

    Diante do novo cenário, o que realmente será necessário permanecer e o que deveremos incluir são tópicos que precisarão ser discutidos em reuniões de professores em todo o mundo. O caminho não é simples e deverá ser construído com base na realidade de cada comunidade escolar e com o apoio de políticas públicas, e por tudo isso, ninguém neste momento tem uma solução pronta para o problema.

 

    Ao mesmo tempo, há muitas crianças matriculadas em escolas. Muitas aulas on-line acontecendo todos os dias. E professores de todas as realidades se perguntando se há alguma maneira de seguir alfabetizando neste contexto remoto. Por isso, este texto é um convite: e se fizéssemos um esforço de olharmos para as possibilidades que o momento nos apresenta?

    Sem “tolices otimistas”, fato é que especialmente em um momento de crise sem data certa para acabar, todos nós precisamos e merecemos parar e nos darmos de presente uma mirada positiva, e ainda assim realista, que servirá como motor para seguirmos em frente com o coração aquecido pela oportunidade de realizarmos um trabalho que faz a diferença na vida dos nossos alunos.

 

    Graças a potentes programas nacionais, estaduais, e por que não citar, programas privados de formação de professores alfabetizadores, já é do nosso conhecimento que o sentido social dos objetos de ensino devem ser preservados e que esta é uma maneira potente (se não a única) de engajar os alunos em seus próprios processos de aprendizagem. A escrita e a leitura são objetos de ensino carregados de sentidos sociais importantíssimos: escreve-se sempre para comunicar algo a alguém (ainda que este alguém seja o próprio autor daquele texto); lê-se para se distrair, refletir sobre a vida, sentir sensações novas, se informar, estudar, aprender a cozinhar, jogar etc.

 

    Em tempos pré-pandemia muito esforço era direcionado para não cairmos na armadilha de escolarizar demasiadamente conteúdos e assim, esvaziar-lhes de sentido. A vida do outro lado dos muros da escola é riquíssima em situações nas quais a leitura e a escrita cumprem seus propósitos sociais, e por isso nas últimas décadas temos procurado replicar estas situações dentro da escola.

“O necessário é, em suma, preservar o sentido do objeto de ensino para o sujeito da aprendizagem, o necessário é preservar na escola o sentido que a leitura e a escrita têm como práticas sociais, para conseguir que os alunos se apropriem delas possibilitando que se incorporem à comunidade de leitores e escritores, a fim de que consigam ser cidadãos da cultura escrita.” (Lerner, 2002, p. 18)

 

    Pois bem, estamos todos em casa. Todos do outro lado do muro da escola, onde a vida sempre aconteceu e segue acontecendo. Com muitas diferenças, claro, mas duas especialmente mais relevantes:

  1. As relações familiares estão muito mais próximas;
  2. As relações com os amigos se tornaram (temporariamente) não presenciais.

 

    Tendo em vista que ler e escrever por si mesmos e por meio das mãos e vozes dos adultos são as situações didáticas essenciais para alfabetizar, o contexto de afastamento social, paradoxalmente, proporciona a possibilidade de participar, provavelmente de maneira mais ativa do que nunca, da cultura letrada que permeia nossas relações. Há tantos propósitos comunicativos, especialmente porque neste momento.... há tanto o que dizer!

 

    Deixo aqui uma pequena lista de possibilidades de interações com a leitura e a escrita no contexto no qual nos inserimos, não necessariamente com o intuito de oferecer novas ideias, mas, sobretudo, validar estas práticas, por mais simples e talvez corriqueiras que sejam, como potentes intervenções docentes, por se tratarem de propostas em que o sentido do objeto de ensino é verdadeiramente preservado.

 

    As possibilidades talvez sejam infinitas, mas deixarei aqui algumas e espero que possamos aumentar esta lista compartilhando este texto com colegas e agregando práticas que têm feito sentido no contexto de cada turma/família. (Ilustro com fotos de cartões recebidos pela minha filha e suas próprias escritas.)

 

Situações de leitura (pelo adulto ou pela criança, ainda que ela não leia convencionalmente)

  • Leitura e releitura de livros de literatura infantil:
    • durante a aula síncrona;
    • leituras gravadas;
    • leitura antes de dormir;
    • leitura para acompanhar a criança naquele tempinho de banheiro;
    • festa do pijama virtual com eleição de um adulto ou criança para fazer uma leitura
  • Leitura de receitas – em livros, cadernos e sites - para preparar nas refeições em família
  • Busca de receitas no livro/caderno de receitas da família
  • Busca de ingredientes na receita (Será que na receita do bolo de cenoura vai leite?/ Quais ingredientes você necessita para fazer um bolo de chocolate?)
  • Leitura de lista de compras – independentemente do suporte onde está escrita, papel ou celular
  • Dividir os itens da lista de compras por sessão do mercado para facilitar e agilizar o momento da compra
  • Leitura de mensagens (via aplicativos de celular) recebidas de amigos e familiares
  • Leitura e releitura de cartões recebidas dos amigos, por exemplo, no aniversário



 

  • Leitura de regras de novos jogos e brincadeiras para experimentar em família
  • Leitura de passo-a-passo para montagem ou confecção de brinquedos
  • Leitura de receita médica
  • Leitura de legendas de fotos em álbuns de família

 

Situações de escrita (pelo adulto e pela criança)

Abaixo, uma lista de sugestões que podem ser usadas tanto com um adulto como escriba quanto com a escrita da criança, mesmo que não convencionalmente.

 

  • Produção de mensagens de carinho a serem enviadas para amigos e familiares.
  • Escrever listas:
    • itens para a festa de aniversário das bonecas
    • itens para a festa de aniversário da própria criança ou de algum familiar
    • de compras no mercado
  • Etiquetar para organizar caixas de brinquedos
  • Organizar álbuns de fotos com legendas:
  • Das últimas férias
  • Dos bons momentos da quarentena – e aqui aproveito para deixar uma reflexão: por que não ressignificar este momento de isolamento para as crianças? Ressaltar na memória delas os bons momentos em família, que estão criando ou reforçando vínculos. Uma vez por semana (ou na periodicidade que melhor atender a cada realidade), fotografar um momento gostoso em família e depois alimentar o álbum com a nova foto e legenda que contextualize aquele momento.
  • Escrever durante as brincadeiras:
    • de médico(a)/veterinário(a) – prescrever receitas, levar até a “farmácia “e ler para o/a “atendente”

(“Pomada. Passar o remédio uma vez ao dia.” Stella, 3a11m)



    • de escolinha – ser professor(a), aluno(a), secretário(a) que faz as matrículas
    • de restaurante – ser o/a garçom/garçonete; a recepcionista que confere a lista de nomes na entrada
    • recomendações literárias (dentro da possibilidade de cada faixa etária) para brincar de empréstimo de livros com colegas de classe, vizinhos, primos, etc.


    Ao planejar situações didáticas neste contexto de afastamento social e de ensino remoto, é de suma importância que se busque garantir uma continuidade do trabalho iniciado na escola, independentemente da área do conhecimento a ser explorada. Desta maneira as crianças sentem o fortalecimento do vínculo com seus colegas, professores e principalmente, com a instituição escolar. Além disso, articular diferentes modalidades organizativas (projetos, sequências didáticas, atividades permanentes e esporádicas) pode ajudar a organizar as propostas de maneira mais fluída, sem que a cada semana seja necessário produzir várias atividades soltas e desconexas entre si. Para quem quiser saber mais sobre as possibilidades de exploração das quatro situações didáticas para alfabetizar, sugiro o estudo de Brakling (2012) (vide bibliografia). 


    Sem dúvida, o assunto não se encerra aqui. Situações de comunicação real bem planejadas são as primeiras intervenções que um professor pode fazer neste momento, mas não são as únicas

    Como seguir intervindo utilizando a tecnologia a favor das interações humanas e quais são os limites destas interações? Bom, já temos assunto para um próximo post!

 

“Analisar e enfrentar o real é muito duro, mas é imprescindível quando se assumiu a decisão de fazer tudo o que é possível para alcançar o necessário: formar todos os alunos como praticantes da cultura escrita.” (Lerner, 2002, p. 24)

 

Seguimos!


 

Bibliografia

Lerner, D. Ler e escrever na escola: o real, o possível e o necessário. Porto Alegre: Artmed, 2002.

BRÄKLING, K. L. A leitura da palavra: aprofundando compreensões para aprimorar as ações. Concepções e prática educativa. São Paulo (SP): SEE de SP/CEFAI; 2012. 

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