A Escola e o dia das mães

 

A Escola e o dia das mães

Criança gosta!
Mãe deseja e espera...
E qual o papel da escola?

 Cintia Fondora Simão*


O nascimento de Celestine**



A mãe é a pele da gente.

Ana, 5 anos[1]

Como educadora, de dentro do cotidiano escolar, muito me interessa, tanto quanto me encanta, a palavra de criança. A partir da fala da pequena Ana poderíamos tratar do conceito infinito mãe para o universo infantil, sobre o lugar intransferível da maternagem na manutenção da espécie, ou dos merecidos reconhecimento e reverência a quem assumem a nobre missão de gerar, gestar, dar à luz, acolher, prover, cuidar, guiar alguém. Inspirada pela pequena Ana, convido você, leitor, a refletir sobre o papel da escola na relação cooperativa com a mãe e com a família.

O calendário segue correndo, os dias escoando por entre os dedos, aflições, afazeres, planilhas, planos de aula, adaptações, incertezas dos tempos de pandemia... e lá vem o dia das mães outra vez, assim como todas as demais ditas datas comemorativas. Tal observação sobre o calendário não pretende restringir a importância inalienável – e gigantesca – que as mães têm no projeto pedagógico de uma escola, participação que precisa ser cada vez melhor entendida, mas sim convidar a uma reflexão sobre a manutenção de uma prática que mal sabe-se lá de onde vem. Qual significado histórico e cultural do dia das mães?[2]

Todo o dia é dia da mãe para a criança, ou dia de quem cuida dela exercendo o que se chama função materna (quem representa e realiza cuidados, media a relação da criança com seus objetos de desejo e tutela para a vida em sociedade). Crianças precisam de proteção, cuidado e orientação. Quem cuida delas? Mais que retórica, é uma pergunta-convite para se olhar a multiplicidade das configurações familiares.

Por quê comemorar o “dia de...”, “dia das...”, “dia dos...”? Quer a escola agradar ensinando a criança a agradar? Família e escola têm, juntas, uma missão a cumprir: a da inserção das crianças na civilização e na cultura. Qual cultura? Qual civilização idealizamos e buscamos construir?

Comemorar ou não o dia das mães na escola – e também dos pais, dos avós, da família – é uma tomada de decisão a partir de algo que precisa estar claro antes de a escola abrir suas portas pela primeira vez: seus valores e princípios. A escola deverá ser sempre aquela que convida à reflexão sobre os padrões que guiam a todos. Como os padrões mudam, as decisões também podem mudar, mas não ao sabor do vento e dos saberes ditados pela visão estagnada da estrutura social e nem pelo paradigma do consumo. É preciso mudar porque há raízes a preservar, que estão fincadas como sustentáculos da instituição, seus valores e princípios. Portanto, a resposta está dada em cada projeto, a partir do que faz sentido para cada escola do ano 2021, já transcorrido um quinto do século XXI.

A escola é lugar de resistência aos apelos individuais, impulsivos, inconsequentes e para isso precisa se inovar e ter coragem para se transformar. Fala-se tanto em inovação da escola. De que se trata inovar? Certamente, muito mais do que aparato tecnológico. A inovação pode começar por abolir a comemoração do dia das mães e outras que não tragam ganhos ao coletivo. Não é porque sempre foi assim que sempre assim será. Queremos, com isso, as mães distantes da escola? Pelo contrário, queremos todas cada vez mais dentro e inteiras, participativas num projeto compartilhado de formação das crianças, usando lentes cristalinas para ver o mundo e mãos realizadoras de ações compartilhadas em cada comunidade escolar, ações com e para o coletivo.

Sobre este tema – e como temos visto sobre todas as coisas – basta um clique para abrir-se um leque de posicionamentos. Do convite comercial ao lugar da honra, da superficialidade do consumo à profundidade psicanalítica, da visão religiosa ao olhar sociológico, antropológico. Por isso, num projeto pedagógico, é preciso pensar na transição do singular no âmbito familiar ao caráter social da escola nesse balaio de crenças, legados religiosos, saberes populares e científicos.

Como cada escola vê o lugar natural, emocional e cultural das mães? Isso que não é pouco definir e determina escolhas. E se a mãe biológica – ou natural – não está por perto seja por perda, por alienação, por abandono, o que a escola faz diante dessa dor emocional? Se as famílias possuem diferentes configurações, vai se insistir em estereótipos? Crianças podem viver em duas casas com suas diferentes famílias – no plural mesmo; podem conviver com mães de outras crianças e resultantes de novos casamentos; podem ser frutos de casais homoafetivos ou daquelas que decidem serem mães sozinhas (e não mães solteiras porque a maternidade não é estado civil, como até o Papa Francisco alertou); podem ainda viver em instituições não familiares porque abandonadas afetiva e materialmente. E talvez as famílias não convivam tão em paz assim como desejaríamos sendo mais um motivo de angústia para a criança. A diversidade é real, atual e bem vinda e não precisa de uma celebração além daquela dos encontros diários na chegada à escola, com a entrega da criança aos cuidados dos educadores; e ao final do período quando é a escola quem entrega a criança de volta à família. Essa entrega diária se vivida com atenção, cuidado, afeto e respeito, é a celebração do encontro.

Na escola não temos o dia das mães (e dos pais, da família), mas sim o dia do livro, da poesia, da ciência, da arte, do corpo, etc., etc., etc. dia de tudo o que é partilhável e que tem seus sentidos construídos coletivamente. A mãe é presente e querida na escola todos os dias, seja no rito de entrada e saída, num evento que festeja os objetos sociais do conhecimento, seja numa fala como a da menina Ana ou ainda na expressão de Antonio que na doçura e complexidade de seus seis anos diz[3] que mãe sou eu todo. Se as crianças estão na escola, lá estão as suas mães também (ou quem exerce este papel na vida delas).

Escolher uma escola para uma criança é compartilhar um projeto de vida, optar pela parceira na ampliação da família, o berço simbólico onde começou a inserção na cultura humana. A família dá à escola nobre lugar, mas não pode ter expectativas alimentadas ou fazer exigências a partir de desejos individuais que se sobreponham ao aspecto coletivo da instituição que representa a sociedade e por ela assume um compromisso com sua multiplicidade de modos de ser e de viver no mundo.

Reproduzir práticas significa manter tradições a serem ultrapassadas se não consideram o modo singular das crianças viverem e pensarem, modo este que as famílias podem olhar com novas lentes se a escola as ajudar. A escola de hoje não pode mais manter  padrões ou tomar decisões por inércia, porque sempre foi assim, e precisa deixar claro à família o que se vai viver juntos no dia a dia. Ainda assim, mesmo diante da clareza, haverá lamentos pela festa não ocorrida, pela mesa do bolo de aniversário em que não cabe requinte de confeitaria profissional ou enfeite de buffet, pela aula de balé pouco convencional e por aí afora. Enfrentar tais lamentos faz parte da produção de novos pontos de vista.

Se a escola é espaço de escuta e de valorização dos saberes e expressões das crianças, no dia a dia recolhe homenagens que elas fazem às suas mães, sem data marcada porque essas são particulares, silenciosas e cotidianas. Cada desenho produzido, cada bolo feito na areia, cada flor recolhida no jardim, cada cantiga aprendida é valoroso presente. Não há um único educador que nunca tenha presenciado declarações assim em sua turma. Valorizar as entregas na hora em que acontecem, tornando extraordinário um fato comum, ajuda a mãe a compreender o tanto de afetos que há numa florzinha coletada no gramado da escola, entendem que não é preciso preparar ou ensaiar nada, porque ensaiar não é infantil, uma vez que infância é espontaneidade. Já que a criança não pode dar à mãe todo o jardim e nem tê-la fisicamente todo o tempo, escolhe para ela um pedacinho de presença, um presente.

Lugar de mãe, de família é sim na escola, cotidianamente e nos momentos destacados em que a escola produz traduções do currículo como uma festa da cultura popular para cantar e dançar, um sarau literário para enriquecer o mundo da palavra, um encontro com cientistas e inventores que tornam a nossa vida diferente, uma mostra de artes plásticas que valorizam as múltiplas linguagens, uma manhã para que adultos brinquem de ser crianças também. Este é o lugar das celebrações escolares: o de homenagear o saber, a cultura, as raças, os livros, as letras, as artes, as ciências, o corpo, as pessoas todas... o infinito!

A data é a segunda maior no movimento do comércio no Brasil, atrás apenas do Natal. A partir da declaração de seus valores, cada escola pode colocar-se em oposição aos apelos comerciais que incentivam relações de consumo resultantes da avalanche de anúncios nas tvs e mídias sociais, colocando-se ao lado das crianças oriundas de famílias das mais diversas configurações e condições materiais, e também daquelas que não têm a mãe para celebrar num dia especial. A data sempre cai num domingo, dia em casa e não na escola, importante detalhe.

Com qual modelo uma escola se identifica? Do agrado, da reprodução ou da reflexão que nem sempre é suave? Cada escolha da escola precisa ter clareza a que serve. A originalidade dos dias está no sentido das escolhas feitas.

 

Mãe: é aquilo que dá vontade de gritar

Quando a gente não sabe o que fazer.

Adriana Falcão, 43 anos

em Dicionário de palavras ao vento



*Cintia Fondora Simão (Cintia.fondora.simao@gmail.com)

Pedagoga pela Universidade de São Paulo desde a década de 80.

Ainda antes disso, professora na educação infantil, seguindo pelos percursos na escola como coordenadora pedagógica e formadora de professores e coordenadores com experiência nos setores público e privado.

Psicanalista pelo Sedes Sapientiae desde 2013.

Assessora projetos pedagógicos e produz materiais para formação de crianças e educadores.



** O nascimento de Celestine 

livro de Gabrielle Vicent - Editora 34

O nascimento de Celestine ocupa um lugar especial na obra da artista belga Gabrielle Vincent (1928-2000), criadora da série de álbuns ilustrados Ernest e Celestine, que conta com admiradores em todo o mundo - e já inspirou um longa-metragem de animação de mesmo nome, finalista do Oscar 2014. Neste livro de imagens, com delicadas ilustrações a pincel e tinta sépia, a autora narra a história de como Ernest, um urso solitário e de bom coração, encontrou a ratinha Celestine - e de como ambos se tornaram companheiros inseparáveis. Um clássico sensível e comovente, que praticamente dispensa as palavras, e toca direto o coração do leitor.



[1] do livro Casa das estrelas – o universo pelo olhas das crianças do professor e escritor colombiano, Javier Naranjo, que organizou junto desta, tantas outras definições infantis para pessoas, objetos, ideias, sentimentos, lugares, palavras. Lançado em 2018 pela editora Planeta.

 

[2] Era maio de 1905 e Anna Jarvis, uma jovem americana, do estado da Virgínia, perdeu sua mãe Ann Maria Reeves Jarvis que dedicava-se a obras sociais como o Mother’s Day Work Club instituição que atua na melhoraria das condições sanitárias da população. Durante a Guerra Civil Americana, Ann Maria Jarvis socorria soldados feridos, independente do lado em que lutavam e depois da guerra, o Mother’s Friendship Day buscou promover o encontro de ex soldados e suas famílias. Em 1908, Anna Jarvis, frequentadora da Igreja Metodista, reúne amigas para celebrarem um culto em homenagem às mães o que repercutiu entre os líderes locais que, então, adotaram uma data oficial para essa comemoração a partir de 1910.

Povos antigos celebravam a maternidade com festivais dedicados a deusas, mas essa não é a origem atribuída ao dia das mães tal como o conhecemos hoje. No Brasil, por influência da cultura norte americana, a comemoração chega em 1918, pela Associação Cristã de Moços de Porto Alegre. Em 1932, passa a ser celebrada oficialmente em todo o país no segundo mês de maio.

Fonte: https://escolakids.uol.com.br/datas-comemorativas/dia-das-maes.htm

 

[3] Isso quem me contou foi sua mãe.



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