Crédito foto: Aline Leão |
Giulianny Russo
“Professora, segue uma lista de orientações para o trabalho com o Pedrinho”
“Professora, o seu foco do trabalho com o Pedrinho precisa ser a interpretação do texto e a escrita ao próprio punho”
“Professora, isso o que você está fazendo não tem qualquer efetividade. Pedrinho não tem como alcançar isso”
“Professora, o Pedrinho pode mais do que você está oferecendo”
“Professora, use esta luminária durante as lições de Pedrinho”
Quem trabalha ou já trabalhou com crianças que fazem algum tipo de atendimento terapêutico provavelmente já se deparou com frases desta natureza, tanto por escrito quanto oralmente. Frente a elas encontramos duas situações: uma em que os professores se sentem aliviados porque, no mais completo desamparo em ‘saber o que fazer com aquele aluno’, enxerga em qualquer suposto saber sobre a criança um bote salva-vidas; e outra em que os professores sentem um incômodo por não reconhecer seu aluno nestas orientações.
Claro que entendemos que há outras possibilidades de relação entre terapeutas e professores, mas gostaríamos de discutir esta que é, sem sombra de dúvidas, a mais frequente, normalmente oriunda de abordagens terapêuticas que consideram o comportamento dos pacientes como resultado direto de uma série de ações externas, não atravessada por aquilo que é próprio do sujeito em tratamento: seus desejos, seus afetos, sua forma de se relacionar consigo mesmo, com o outro, com o mundo.
Contudo, esta criança está inserida em um mundo real, diferente daquele que é proposto em terapia e, por isso, a eficácia deste tipo de tratamento depende não apenas de uma mudança subjetiva do paciente, mas, sobretudo, de que os estímulos a ele dirigidos sejam coerentes entre si. Neste sentido, para adestrar, digo, mudar o padrão de resposta da criança, precisa mexer na forma com que todas as pessoas de sua convivência se encaixam neste modo de se relacionar com ela, por isso, uma série de orientações. Estas orientações advém sempre do terapeuta, detentor do saber (sempre absoluto e soberano) sobre a criança.
É certo que, em muitos casos, o terapeuta tem ou pode vir a ter um conhecimento mais longitudinal sobre a criança, por acompanhá-la por muitos anos a fio, enquanto o professor muda a todo ano – digo “em muitos casos”, porque não é sempre que um atendimento é mantido por muito tempo com o mesmo profissional. O terapeuta também, em geral, tem um olhar exclusivo para a criança, já que o mais comum são as terapias individuais, e sobre o quadro que ela apresenta.
O professor, por sua vez, embora acompanhe a criança somente por um ano, está com ela 5 horas por dia em 5 dias da semana, em 200 dias no ano. Ainda que o professor tenha um olhar individual para cada aluno, planejando e propondo atividades de acordo com as possibilidades de cada um, isto é, pensando intervenções individualizadas, toda a cena escolar se desenrola em um espaço coletivo, com pessoas reais, situações reais, que são a própria vida social.
O professor vê como essa criança reage quando alguém lhe toma o brinquedo ou quando lhe pedem emprestado um material; quando não sabe fazer algo ou quando acha aquilo “baba”. Vê quando está triste, porque brigou com um amigo, e atua junto com os envolvidos na resolução dos problemas que ocorrem no dia-a-dia. Escuta, não apenas o que esta criança fala sobre os colegas, mas o que os colegas falam sobre esta criança; as atitudes que ela tem e que causam desconforto ou irritação nos outros, ou aquilo que lhe deixa irritada nas atitudes deles. Observa o que ela come e como o faz. Vê o que traz de casa, não somente sobre o que a família pode explicitar, mas como ela lida com as frustrações das crianças, o investimento que fazem na vida escolar, as expectativas que têm, como reagem quando a criança erra, não consegue ou recusa; ou quando perde algum brinquedo ou material.
Embora seja sedutor entrar na competição de “quem sabe mais sobre o aluno”, o ponto ao qual quero chegar é: por que o saber do professor sobre o seu aluno não encontra um status de poder? É fato que o terapeuta tem o saber sobre a criança-paciente e, sobretudo, sobre o quadro-clínico que ela apresenta, mas por que saber mais sobre “o autismo”, por exemplo, é mais importante que saber sobre “o Pedrinho”?
A troca entre os profissionais precisa ser da ordem da paridade e não da hierarquia, porque se esta existisse, como fonoaudióloga e como pedagoga, sem dúvida me poria ao lado do professor, pois além de ficar mais tempo com a criança, ele fica em um contexto social real. Ainda que o professor “não saiba nada sobre autismo”, ele sabe sobre o Pedro e, para trabalhar com o Pedro, este conhecimento é essencial.
Saber o que a criança consegue fazer na terapia, na escola e em casa ajuda a compor um saber sobre ela. O fato dela conseguir fazer algo em um ambiente e não em outro não representa, em absoluto, a incompetência de uma instância sobre a outra. Ao reconhecermos que aquela criança é um sujeito, e não uma simples soma de habilidades, e que ocupa diferentes papéis sociais em função dos contextos, dos seus pares e, sobretudo, dos seus desejos, conseguimos vislumbrá-la como ser complexo que é.
Portanto, os diferentes olhares sobre a criança, nestas diferentes instâncias, permitem o acesso a esta complexidade, e nos ajudarmos mutuamente (pleonasmo intencional) é a possibilidade de educar tratando e tratar educando¹.
Claro que entendemos que há outras possibilidades de relação entre terapeutas e professores, mas gostaríamos de discutir esta que é, sem sombra de dúvidas, a mais frequente, normalmente oriunda de abordagens terapêuticas que consideram o comportamento dos pacientes como resultado direto de uma série de ações externas, não atravessada por aquilo que é próprio do sujeito em tratamento: seus desejos, seus afetos, sua forma de se relacionar consigo mesmo, com o outro, com o mundo.
Contudo, esta criança está inserida em um mundo real, diferente daquele que é proposto em terapia e, por isso, a eficácia deste tipo de tratamento depende não apenas de uma mudança subjetiva do paciente, mas, sobretudo, de que os estímulos a ele dirigidos sejam coerentes entre si. Neste sentido, para adestrar, digo, mudar o padrão de resposta da criança, precisa mexer na forma com que todas as pessoas de sua convivência se encaixam neste modo de se relacionar com ela, por isso, uma série de orientações. Estas orientações advém sempre do terapeuta, detentor do saber (sempre absoluto e soberano) sobre a criança.
É certo que, em muitos casos, o terapeuta tem ou pode vir a ter um conhecimento mais longitudinal sobre a criança, por acompanhá-la por muitos anos a fio, enquanto o professor muda a todo ano – digo “em muitos casos”, porque não é sempre que um atendimento é mantido por muito tempo com o mesmo profissional. O terapeuta também, em geral, tem um olhar exclusivo para a criança, já que o mais comum são as terapias individuais, e sobre o quadro que ela apresenta.
O professor, por sua vez, embora acompanhe a criança somente por um ano, está com ela 5 horas por dia em 5 dias da semana, em 200 dias no ano. Ainda que o professor tenha um olhar individual para cada aluno, planejando e propondo atividades de acordo com as possibilidades de cada um, isto é, pensando intervenções individualizadas, toda a cena escolar se desenrola em um espaço coletivo, com pessoas reais, situações reais, que são a própria vida social.
O professor vê como essa criança reage quando alguém lhe toma o brinquedo ou quando lhe pedem emprestado um material; quando não sabe fazer algo ou quando acha aquilo “baba”. Vê quando está triste, porque brigou com um amigo, e atua junto com os envolvidos na resolução dos problemas que ocorrem no dia-a-dia. Escuta, não apenas o que esta criança fala sobre os colegas, mas o que os colegas falam sobre esta criança; as atitudes que ela tem e que causam desconforto ou irritação nos outros, ou aquilo que lhe deixa irritada nas atitudes deles. Observa o que ela come e como o faz. Vê o que traz de casa, não somente sobre o que a família pode explicitar, mas como ela lida com as frustrações das crianças, o investimento que fazem na vida escolar, as expectativas que têm, como reagem quando a criança erra, não consegue ou recusa; ou quando perde algum brinquedo ou material.
Embora seja sedutor entrar na competição de “quem sabe mais sobre o aluno”, o ponto ao qual quero chegar é: por que o saber do professor sobre o seu aluno não encontra um status de poder? É fato que o terapeuta tem o saber sobre a criança-paciente e, sobretudo, sobre o quadro-clínico que ela apresenta, mas por que saber mais sobre “o autismo”, por exemplo, é mais importante que saber sobre “o Pedrinho”?
A troca entre os profissionais precisa ser da ordem da paridade e não da hierarquia, porque se esta existisse, como fonoaudióloga e como pedagoga, sem dúvida me poria ao lado do professor, pois além de ficar mais tempo com a criança, ele fica em um contexto social real. Ainda que o professor “não saiba nada sobre autismo”, ele sabe sobre o Pedro e, para trabalhar com o Pedro, este conhecimento é essencial.
Saber o que a criança consegue fazer na terapia, na escola e em casa ajuda a compor um saber sobre ela. O fato dela conseguir fazer algo em um ambiente e não em outro não representa, em absoluto, a incompetência de uma instância sobre a outra. Ao reconhecermos que aquela criança é um sujeito, e não uma simples soma de habilidades, e que ocupa diferentes papéis sociais em função dos contextos, dos seus pares e, sobretudo, dos seus desejos, conseguimos vislumbrá-la como ser complexo que é.
Portanto, os diferentes olhares sobre a criança, nestas diferentes instâncias, permitem o acesso a esta complexidade, e nos ajudarmos mutuamente (pleonasmo intencional) é a possibilidade de educar tratando e tratar educando¹.
Referências bibliográfica:
KUPFER, M. C. M; PATTO, M.H.S. VOLTOLINI, R.
Práticas Inclusivas Em Escolas Transformadoras: ACOLHENDO O ALUNO-SUJEITO. Ed.
Escuta. São Paulo, 2017.
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