Ensinar a ler em meios digitais: refletir e compartilhar uma experiência

 



Ensinar a ler em meios digitais: refletir e compartilhar uma experiência (1)

Giulianny Russo

 

São inúmeras as possibilidades de integrar os aparatos tecnológicos aos trabalhos realizados em sala de aula, de forma a potencializar e significar as práticas desenvolvidas.  Ao longo do ano, as crianças têm diversas oportunidades de ler e produzir textos, vídeos e imagens, editar apresentações, murais virtuais e textos, realizar pesquisa de textos e imagens na internet, além de explorar jogos que contextualizam alguns conteúdos trabalhados em Matemática.

Mas, por que usar tanto a tecnologia em sala de aula? Será apenas mais um dos modismos que chegam à área de educação?

A inclusão das TIC na sala de aula responde a um propósito maior que o de “ensinar computação” e se relaciona às diferentes áreas do conhecimento. Do ponto de vista da leitura e da escrita, suas respectivas práticas sociais estão intimamente entranhadas ao uso das “novas tecnologias”. Se, consideramos que é objetivo da escola formar leitores e escritores que possam participar ativa e criticamente das diferentes esferas sociais é fundamental que a escola aproxime seus alunos às distintas práticas sociais de uso da linguagem, práticas reais, que existam fora da escola. Desse mesmo modo, o uso das TIC em sala de aula deve ser reflexo do uso que é feito fora dela.

Ao entendermos que saber ler e escrever não se restringe ao conhecimento da notação escrita, mas que envolve o conhecimento das funções sociais e das práticas a ela atreladas, para que a escola cumpra seu compromisso alfabetizador precisa se responsabilizar pela aprendizagem da leitura e da escrita nos “novos suportes” e de todas as consequências que eles acarretam.

Nesse sentido, compartilharei a seguir uma das práticas que envolveram o uso das TIC, desenvolvidas ao longo do ano, com crianças entre 7 e 8 anos, cursando o 2º ano do Ensino Fundamental 1, que foi a leitura de notícias realizadas na internet.

 

 Bola em jogo - Leitura, futebol e sociedade

A ideia dessa proposta iniciou partindo do pressuposto de que é muito importante aproximar os meninos e meninas aos diferentes gêneros textuais. Nesse sentido, realizamos trabalhos no âmbito da leitura com diferentes graus de sistematicidade. Com frequência semanal busca-se contemplar a poesia, o conto, o texto científico e a notícia; e com frequência variada, receitas, instruções, lendas, fábulas, regras de jogo etc. Paralelamente o trabalho de formação literária, é realizado durante todo o ano letivo, considerando as características da faixa etária e as demandas específicas dos grupos de aluno, um trabalho sistemático relacionado à formação de valores, à possibilidade de colocar-se no lugar do outro, de refletir sobre determinadas atitudes e seus impactos. Este trabalho é realizado por meio de discussão de situações do dia-a-dia, pela apreciação de imagens, leituras de contos e, como no caso que será apresentado, por meio da leitura de notícias.

A notícia selecionada para a discussão fora escolhida em função de sua pertinência temporal e social, pois se refere a um problema que enquanto sociedade ainda precisamos nos implicar muito para saná-lo. Além disso, grande parte do grupo apresentava muito interesse pelo futebol, de modo que a notícia oferecia um contexto potente para envolver as crianças na discussão. Tratava-se sobre um caso de racismo sofrido por um jogador brasileiro, que atuava na Sérvia (Brasileiro é alvo de racismo em jogo na Sérvia). A título de organização deste texto, o dividi em três momentos: Antes, durante e depois da leitura.

Antes de iniciar a leitura, comentei com o grupo que havia lido uma notícia na internet que tinha chamado muito a minha atenção e que eu gostaria de escutar a opinião deles a respeito. A ideia dessa “apresentação” foi já comunicar ao grupo tanto o tipo de texto que leriam quanto à postura que eu esperava deles – que se posicionassem, emitissem uma opinião a respeito.


Durante a leitura, projetei a notícia no telão e realizei uma leitura corrida, apontando com o cursor do mouse onde estava lendo. Iniciei pelo título, seguido pela lide e o corpo da notícia.

Após a leitura, deixei um momento de silêncio e então dirigi ao grupo perguntas genéricas, por exemplo, “o que acharam?”, “qual parte chamou a atenção?”. O objetivo dessas perguntas era o obter algumas pistas a respeito da compreensão do conteúdo da notícia.

O grupo havia entendido que se tratava de algo acontecido no universo do futebol, que um jogador havia chorado, que havia sido chamado de macaco e que mostrou o dedo do meio. Este último aspecto foi o que mais chamou a atenção do grupo, que se deteve a discutir se estava certo ou não mostrar o dedo. Essa conversa acabou revelando que não haviam compreendido o motivo de Everton ter se ofendido e reagido de tal forma. Propus a releitura de partes por partes para ver se respondia a essa dúvida.

Apesar de no lide ter a frase “Torcida de time adversário fez sons de macaco toda vez que atleta tocava na bola” o grupo não demostrou estranhamento. Somente no final do 2º parágrafo é que puderam perceber que os torcedores haviam ofendido o jogador em decorrência da passagem: “(...) após torcedores do Rad abrirem uma bandeira insultando o atleta (...)”.

Questionei o grupo sobre qual teria sido a outra ofensa sofrida além da bandeira e, após alguma discussão, um aluno retomou o 1º parágrafo dizendo: “ele sofreu um monte de ataque racista” (SIC) – se referindo ao trecho “(...) sofrer uma série de agressões racistas da torcida (...)”. Relemos o trecho e conversamos sobre quais foram as agressões racistas e o que seriam. Nesse momento ficou claro que o grupo não reconhecia o significado da palavra racista, chegando inclusive a levantar a hipótese de que se referia a uma marca de ração de cachorros (!), o que foi rapidamente refutada por outras crianças do grupo, tendo em vista o contexto geral do texto.

Nesse momento, questionei sobre o que poderíamos fazer para compreender o melhor o problema sofrido pelo jogador e sugeri que olhássemos a página e o texto e observar se traria alguma pista que nos ajudasse nesse sentido. Exploramos então a página em um misto de questionar e apresentar as diversas informações: publicitárias, menu com link para outras páginas da revista, link para outras notícias com outros assuntos, espaço para buscas no site, links para notícias relativas ao assunto, links para fotos e hiperlinks, links para compartilhamento e matérias sugeridas para o usuário.

Durante a exploração a reflexão foi a de pensar no por que um link poderia ou não contribuir com nosso objetivo, que era o de entender melhor porque o atleta havia ficado ofendido e que isso tinha a ver com “as agressões racistas”. Chegamos a entrar em alguns caminhos como as fotos e a propaganda de mochilas, como forma de testar as sugestões oferecidas, para averiguar se nos ajudaria ou não a aprofundar a compreensão sobre o assunto. Conversamos sobre a quantidade de informações que encontramos nesse meio e a importância do olhar criterioso, pois se corre o risco de perder o foco e não encontrar o que se procura. Propus, então, nos determos aos hiperlinks (no quadro “Leia também” havia a sugestão de uma matéria bastante pertinente “A ambígua trajetória do racismo no futebol no Brasil”, mas não foi sugerida pelo grupo e também considerei que não valia a pena apontar nesse momento, pois é uma matéria extensa e complexa e fugiria dos propósitos dessa atividade).

Localizamos três hiperlinks: “agressões racistas”, “insultos racistas da arquibancada” e “futebol”. Para o primeiro as crianças acreditavam que encontrariam explicações para o que são agressões racistas, já o segundo diria sobre o que a torcida falou exatamente para o jogador e o último diria sobre o futebol na Sérvia. Entre os três, avaliaram que o primeiro responderia melhor já que eles precisavam “entender o que eram agressões racistas e não saber os palavrões usados, pois é normal falar palavrão no futebol e nem sempre ofende” (SIC).

Já no lide desta nova notícia as crianças puderam perceber que se tratava de uma questão relacionada a cor da pele, embora não compreendessem totalmente o texto:

 

Negros e mestiços estão sub-representados na estrutura de poder do futebol, dominada por uma elite branca, afirma estudioso. Esporte tem uma tradição racista no Brasil (grifo meu)

 

Mas foi somente ao final do 2º parágrafo que compreenderam que agressões raciais têm a ver com “ofender e tratar mal uma pessoa só porque tem a pele negra” (SIC) e observamos que tanto no caso apresentado nesta notícia quanto na notícia original, os jogadores foram chamados de macaco e iniciamos uma conversa, que foi retomada em outros momentos, sobre “o por quê chamar de macaco é um problema, já que macaco é fofo, inteligente, divertido...” (SIC).  Nesse momento nos detivemos a intencionalidade dos agressores e porque essa era uma comparação com conotação negativa. Não li essa notícia na íntegra, mas sinalizei para o grupo dois parágrafos que eu tinha avaliado especialmente interessantes para entendermos a questão:

Discriminação histórica. Casos de discriminação racial fazem parte da história do futebol desde que o esporte chegou ao Brasil. No início, o esporte adotado pela elite excluiu os negros. No Brasil, em alguns clubes eles eram proibidos de jogar até a década de 1950, como no caso do Grêmio. O Vasco da Gama foi o primeiro clube a aceitar oficialmente esportistas negros.

"Ao longo do século 20, o negro foi se inserindo, mas sempre com um lugar bem definido dentro da estrutura esportiva futebolística: como atleta, mas raramente como dirigente ou técnico", afirma Ribeiro.

 

Retomamos à página original e propus ao grupo verificarmos o que continha os outros dois hiperlinks. No “insultos racistas da arquibancada” vimos que se tratava de outra notícia que retratava a discriminação racial nos gramados (lemos somente o lide e o 1º parágrafo) e o terceiro hiperlink tratava sobre um tema relacionado a transmissão dos jogos da Seleção.

Como a discussão já havia sido intensa e longa, optei por finalizar a aula sem mais conversas e retomá-la no dia seguinte.

Resgatamos a conversa focando apenas na problemática trazida pela notícia e não no portador. Conversamos sobre o que haviam pensado sobre o assunto, se já viveram ou presenciaram situações dessa natureza. Retomei o site da Carta Capital e mostrei que no “Menu” aparecem as várias seções em que as matérias são organizadas. Que na seção “Economia” tem as notícias relacionadas a finanças, dinheiro; que “Internacional” tem notícias do mundo etc. Em uma exposição dialogada, em que eu perguntava o que eles achavam que encontrariam e eu acrescentava, validava ou informava. Por fim, questionei porque a notícia que lemos estava na seção “Sociedade” e não na seção “Esportes”.



Entramos nessa seção para analisar quais tipos de notícia ela contém, li as chamadas e, então, o grupo concluiu:

Criança 1: Essa seção tem notícias de problemas

Criança 2: Mas não são só problemas, veja... (mostrou uma notícia)

Criança 3: Tem coisas úteis também

Professora: Úteis a quem?

Criança 4: Às pessoas (...) às pessoas que usam as coisas que cada notícia fala

Criança 1: Está em Sociedade, porque não é só no futebol

Criança 5: Não são apenas as pessoas que vêm futebol que precisam saber disso.

Criança 6: Todos precisam saber, porque isso é ruim para todos.

 

Placar final – algumas considerações

A proposta apresentada toca fundamentalmente em dois aspectos: um relacionado à formação de valores por meio da reflexão da discriminação racial e outro relacionado à leitura nos portadores virtuais. Porém, compartem uma característica fundamental: ambos atuam fortemente na formação de um sujeito crítico, que olha os fenômenos sociais e os questiona, que entra em contato com uma informação e a questiona. Que sabe onde encontrar as informações, como selecioná-las, o que ignorar, como se aprofundar. Se antigamente, tínhamos a segurança de um processo editorial criterioso hoje, para ler, é fundamental desconfiar da fonte.

Vale ressaltar que não é apenas uma situação didática que dará conta de todos esses aspectos tanto do ponto de vista da formação moral quanto do ponto de vista do uso da tecnologia e os novos comportamentos leitores.

Como sucede con la adquisición de otras prácticas del lenguaje, la formación de lectores involucra generar situaciones didácticas continuas y diversas desde edades muy tempranas y a lo largo de toda la escolaridad. (Perelman, 2012, p.283)

Focando no ponto principal desse artigo, que é sobre o uso das TIC, observamos por essa situação quão pertinente, necessária e contextual é essa discussão. A internet não tem uma estrutura canônica e estandardizada, que facilite a antecipação do conteúdo. Este por sua vez, se apresenta com diversos níveis de profundidade e exige do leitor uma postura ativa em relação ao percurso que realizará.  Por ser uma prática social de uso, sua aprendizagem escolar deve acontecer no contexto de uso: aprende-se a ler, lendo; aprende-se a escrever, escrevendo e apropria-se dos suportes tecnológico, usando-os.

Contudo, é fundamental destacar que nenhuma tecnologia é efetiva por si própria: conquistar objetivos educativos ou didáticos não acontecerá somente por introduzi-las, mas dependerá do planejamento, desenvolvimento e intervenções, bem como da possibilidade de aproximar-se dessa prática de forma contínua e sistematizada.

A proposta apresentada foi uma aproximação ao tema das TICs na sala de aula e uma possibilidade de exploração que se apresentou como bastante produtiva ao grupo, mas vale considerar que este é um assunto que demanda investimento no desenvolvimento de outras didáticas, bem como na pesquisa e estudo de como as TICs entram na sala de aula.


Referências bibliográficas

PERELMAN, F. Las lecturas exploratórias como objetos de enseñanza. In: GOLDIN, D., KRISCAUTZKY, M. e PERELMAN, F.  Las TIC em la escuela, nuevas herramientas para viejos y nuevos problemas. Ed Oceano travesia. Barcelona, 2012.

__________ (coord.) Enseñando a leer en Internet: pantalla y papel en las aulas. Aique. Buenos Aires, 2011.

CASTEDO, M., SIRO, A., MOLINARI, C. Enseñar y aprender a leer, Buenos Aires, Novedades Educativas.

CHARTIER, R. Las revoluciones de la cultura escrita. Gedisa. Barcelona, 2000.

1 - Artigo publicado em espanhol na revista Aula de innovación educativaISSN 1131-995X, Nº 289, 2019págs. 37-41 e em catalão na Guix: Elements d'acció educativaISSN 0213-8581, Nº. 462, 2019pág. 37



 

 

 

 

 

 

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