Emília Ferreiro: seus olhos de ver e nos possibilitar ver

 

Emília Ferreiro: seus olhos de ver e nos possibilitar ver


Giulianny Russo

A primeira vez que ouvi o nome de Emília Ferreiro foi aos 9 anos. Sim, aos 9.

Minha mãe, fora do mercado de trabalho há cerca de uns 8 anos, resolvera fazer o magistério. Lembro-me das tantas vezes em que ela chegava em casa com sua pasta catálogo abarrotada de desenhos, colagens etc. que ela fazia para a disciplina que cursava de “Educação artística” – até hoje temos esta pasta em casa.  Lembro-me do dia em que ela chegou com uma porção de carimbos (que algum revendedor foi mostrar para as alunas sedentas por estratégias didáticas) e indignada com uma tal argentina que dizia que tudo bem falar para a criança escrever do jeito dela e que, frente à pergunta: “prô, tesoura é com z ou com s?”, a professora teria que responder: “o que você acha?”. Na época, ao ouvir minha mãe falando de suas reflexões, fui pensar o que eu mesma achava, se eu achava que era com s ou com z, porque, pra mim, “era óbvio que era com z”. Somente muitos anos depois pude entender o que era “assimilação deformante” e que este era um tremendo exemplo (infelizmente não era apenas minha mãe que havia entendido mal).

Fui ouvir novamente sobre Ferreiro na faculdade de fonoaudiologia, já aos 20 anos, nas disciplinas sobre aquisição da linguagem escrita, mas, a professora que não era grande fã, reduziu tudo ao exercício de olharmos para placas de automóveis na rua, imaginarmos que eram representações silábicas e inferirmos o que estaria “subliminarmente” escrito.

Na graduação em Pedagogia, não tive aulas sobre Piaget, Vigostky, muito menos sobre Ferreiro e, em uma discussão, ouvi de um professor coisas como: “na perspectiva construtivista se defende que se deixe a criança brincar sozinha com o objeto físico e que ela vai aprender tudo, que basta deixar a criança com um livro que ela aprende a ler... o professor não tem função no processo de aprender”.

Minha sorte é que nesta época eu já sabia o que era “assimilação deformante” e pude questioná-lo sobre estas ideias, ao que ele respondeu: “o problema do construtivismo é que não há uma cartilha, um manual que explique o que fazer e como o professor deve fazer” – sim, ele usou estes termos. Neste momento, tirei da minha bolsa os vários livros que me acompanhavam (e que não por sorte estavam comigo), e comentei que todos eles traziam princípios, exemplos, ideias, mas que a minha prática como professora era construída à luz destes princípios, no encontro com meu aluno, em determinada escola, com aquelas condições. Hoje, escrevendo, penso que este professor devia estar sendo irônico e eu que não o compreendi, não é possível.

Nesta época, por sorte, eu já lecionava e, embora ainda estivesse na graduação, procurei cursos que me apoiassem na reflexão sobre os processos de aprendizagem de meus alunos e na construção da minha prática como professora. Por sorte, caí no Centro de Formação da Escola da Vila, lugar que mais tarde tive, também a sorte, de trabalhar como professora alfabetizadora. Lá, pela voz doce, sabida e generosa da Andrea Luize, conheci uma postura epistemológica frente ao conhecimento, ao processo de aquisição do conhecimento e ao sujeito de aprendizagem com a qual profunda e imediatamente me identifiquei

Desde então, venho lendo, relendo, estudando. Cada novo encontro com os textos de Emília Ferreiro (assim como os de Mirta Castedo e Delia Lerner) é um encontro de amor que me faz sentir-me sabida e dar-me conta do quanto falta por entender, estudar, investigar, ou seja, que me responde um tanto de coisas, mas me inquieta e impulsiona a buscar tantas outras respostas. Pensando nas sortes da vida, fiz a pós no Centro de Formação da Escola da Vila com profissionais que se dedicaram fortemente ao estudo e aprofundamento das pesquisas didáticas da língua escrita, num movimento de não mera aplicação “daquilo que fulana ou ciclana diz”, mas de compreensão e investigação a partir da teoria e da reflexão sobre a prática. Que pena para nós não termos mais este programa de pós-graduação.

Continuando na linha da sorte, pude realizar o meu sonho de fazer o mestrado em “Escritura y Alfabetización”, na Universidade Nacional de La Plata, Argentina (também com todo apoio e suporte da Escola da Vila que, mais do que permitir, incentivou e sustentou esta minha formação). Lá foi onde pude estudar com minhas grandes mestras e... Há uma palavra que signifique mais do que sorte? Não sei... mas tive a oportunidade de ser uma aluna da GIGANTE Emília Ferreiro – última aula que ela deu neste programa. Chorei do início ao fim. Lembrei-me de minha mãe (que vibrou comigo esta conquista, pois já não compreendia tão equivocadamente o que Ferreiro dizia); lembrei-me das placas de carro e do professor falando de cartilha construtivista; lembrei-me da Andrea Luize e como foi um farol iluminando um universo para mim; lembrei dos meus alunos, suas escritas, da poesia em suas escritas e em como as explicavam; lembrei-me do quanto aprendi com eles, mas que só pude aprender com eles e enxergar suas possibilidades, porque teve uma pesquisadora inquieta, lá atrás, que revolucionou a educação, não porque categorizou as escritas, como costumam valorizar, mas porque nos ensinou a enxergar nas crianças um ser inteligente,  porque nos ensinou a olhar com olhos de quem quer ver.

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