Crédito da Foto: Carolina P.
Cintia Fondora Simão*
Tenho
na memória, viva, uma fotografia de minha meninice. Era festa da Primavera na
escola. E lá fui eu para uma apresentação de algo, que não me lembro mais o que
era. Minha mãe me vestiu com camisa e meia-calça brancas, calçou-me a conga
vermelha, como solicitado. Minha professora completou com uma saia de papel
verde e uma margarida de cartolina para adornar a cabeça, como mandava o
figurino. Hoje me divirto e também me emociono diante dessa imagem. Divirto-me
com as concepções de crianças que norteiam tudo o que se propõe a elas, o modo
como as vemos e lhes permitimos, ou não, viver a potência e a poética que
carregam em si.
Emociono-me
em pensar que era muito bom aquele tempo em que eram flores tudo o que pairava
sobre a cabeça de uma criança. Porém, sempre há um porém. Ainda criança eu já
sabia que não era sempre assim; os dias eram também nublados, misteriosos,
enigmáticos; alguns até preocupantes. Sim, crianças também têm preocupações, e
seus dias são intensos; o certo e o instável, o bom e o ruim, o que acalma e o
que amedronta alternam-se nas experiências vividas, e é preciso vivê-las. Assim
podem crescer saudáveis. Quanto mais tiverem reconhecido pelos adultos ao seu
redor seu modo próprio, provisório e verdadeiro de ver e explicar o mundo e as
relações, mais seguras elas serão.
Em
intenso convívio com crianças, é claro perceber que para elas nem tudo é
simples, tranquilo, estável. Estão em segurança sim, porque são cuidadas por
adultos pais, adultos educadores, adultos diversos. Mas o pensamento, aquilo
que nem sempre compartilham, nem sequer deixam escapar, está habitado por muitos
questionamentos. Estar em segurança é o que permite às crianças indagarem-se
sobre os mistérios e também os limites que a vida impõe a todos. Por que
não é possível brincar com a boneca agora e é necessário tomar banho, se há
pouco brincava tranquilamente?
Como
a luz se acende com o simples movimento de um botão? Se não é para correr
aqui, porque podemos trombar com outros, por que se chama corredor? Por
que a mamãe não pode ficar a manhã toda na escola se é ela quem cuida tão
bem? Onde está guardado o vento que balança as folhas da árvore que se
pode ver pela janela? Todos os dias, depois da escola, é para casa que se
volta? E depois de mais uma noite, é para a escola que se vai? Será
assim para sempre? Quantas pedrinhas e folhinhas secas são necessárias
para decorar um surpreendente bolo de areia? Todas as crianças vivem numa
casa igual a esta? Perguntas divertidas, algumas profundas, outras
complexas, e tantas, de verdade, sem resposta.
São
muitas as perguntas que as crianças se fazem, e isso as mobiliza, ocupa,
preocupa, enchem-nas de sentimentos diversos. Aquelas mais simples, mesmo que
abstratas, referem-se a como o mundo funciona, o porquê das convenções, quem
inventou tudo o que existe, enfim, tratam de assuntos que os saberes
socialmente construídos podem explicar.
Crianças
pensam, e muito; formulam teorias que assumem como verdade, e são as novas experiências
que lhes mostrarão sua provisoriedade. São potentes para formular soluções e
enfrentar os conflitos cognitivos que os fatos lhes apresentam; é isso que as
faz avançar. É assim também com os grandes pensadores de todos os tempos.
E
as tantas perguntas enigmáticas, profundas, densas, aquelas que não
imaginávamos que poderiam fazer, e não temos como responder? Dizem respeito à
construção de subjetividades, à tomada de consciência de si, à construção de
recursos internos para enfrentar o que é inexplicável, que ainda está sem nome.
Nomear é diferente de explicar; não é de explicação que as crianças precisam
muitas vezes, mas sim de um nome para afetos que circulam dentro delas. Não é
tradução para o que sentem o que esperam, mas sim um espaço emocional de
tranquilidade para colocarem em palavras algo que é só energia; colocar em palavras
mesmo que não cheguem a dizê-las para nós. Sim, crianças têm direito ao
silêncio. Crianças pensam, e é preciso deixá-las tranquilas para pensar.
Pois
é, nem sempre o que paira sobre a cabeça das crianças são flores. Viver é
enigmático também, e é isso que nos deixa vivos. Será que outras crianças
podem guardar um bolinho de areia numa caixa de tesouros e escondê-la dentro de
um armário? Todas? Do mundo inteiro? Crianças nos encaram com olhares que
nem sempre podemos entender, porque não sabemos o que nos perguntam ou não
temos como mergulhar na profundidade de seus calados questionamentos.
A
poética dos grandes escritores produz uma imagem da infância que muito nos
ajuda quando nos faltam palavras. Nosso grande Manoel de Barros (1916-2014), em
seu belíssimo texto “Gratuidade das aves e dos lírios”, de 1999, indica o que
nos falta quando chegamos à vida adulta:
“Queria descobrir por
que os pássaros escolhem a amplidão para viver enquanto os homens escolhem
ficar encerrados em suas paredes?
Sou leso em tratagem com
máquina; mas inventei, para meu gasto, um Aferidor de Encantamentos.
Queria medir os encantos
que existem nas coisas sem importância.”
Obrigada,
poeta. Obrigada, crianças, por me mostrarem a dimensão encantada de um bolinho
de areia no parque de nossa escola. Obrigada por me receberem, diariamente, no
precioso território de sua infância.
________________________________
* Cintia
Fondora Simão - Pedagoga pela Faculdade de Educação da USP. Psicanalista
pelo Instituto Sedes Sapientiae/SP. Especialista em Alfabetização pelo
ISEVEC/SP. Professora e coordenadora pedagógica da educação infantil e das
séries iniciais do ensino fundamental há mais de 30 anos. Tal percurso
incrementa a formação permanente nas práticas pedagógicas da escola
construtivista e na abordagem italiana de Reggio Emilia para a educação da
infância. Formadora de professores em projetos para a rede pública pelo Centro
de Estudos da Escola da Vila/SP e em ações autônomas de assessorias para
projetos educativos na educação infantil.
Fonte: Colégio
Anglo XXI – Blog do Estadão (publicação de 10 de outubro de 2016).
0 Comentários