Esta reflexão começa com uma leitura da situação enfrentada pelas crianças perante o atual contexto de pandemia e aulas online. Foi essa leitura que pautou os princípios que nortearam as decisões e encaminhamentos pedagógicos. Para isso, não poderíamos deixar de apontar as perdas que nossos estudantes sofreram.
Após um breve retorno às aulas com o encontro dos seus professores
e sua nova turma, em março de 2020, nossas crianças são, repentinamente,
apartadas do convívio escolar.
Embora poucos, os 20 dias letivos que antecederam a interrupção das
aulas na escola física foram bastante intensos e fundamentais para todo o
contexto adverso de trabalho que estava pela frente: foram dias especialmente
voltados para a construção de vínculos afetivos, de confiança para se
relacionar, para o aprender entre todos e o reconhecer um ao outro.
E, assim, sem muito tempo para despedidas, as crianças perderam o
chão da escola. Perderam o convívio com os amigos. Perderam a rotina. Perderam
o brincar, o se relacionar entre pares. Perderam a aprendizagem colaborativa,
que traduz o sentimento de pertencimento e identidade dentro do grupo, que
motiva e melhora a autoestima. Crianças que também têm aprendido a perder.
O que mais essas crianças não poderiam perder? Como garantir
qualquer coisa nesta única possibilidade de encontro que, a partir de então, teríamos?
Elas não poderiam perder a identidade de grupo que havia sido
intensamente pensada nos primeiros dias de aula. Por isso, a primeira decisão
didática foi a de não separar a turma em pequenos agrupamentos - ainda que
houvesse momentos de trabalho com distintas parcerias. A intenção foi a de
proporcionar uma dinâmica minimamente semelhante à da sala de aula,
possibilitando a “convivência” entre todos, para manter o grupo vivo.
Vale destacar que essa foi uma forma de organizar o processo,
dentro das possibilidades vislumbradas e priorizadas no momento, e não
desconsidera outros manejos, tão pouco pretende ser o único possível.
A gestão da participação oral ao longo das aulas foi bastante
árdua, mas fazer circular a fala nas discussões entre todas as crianças as
ajudava a manter-se conectadas às propostas e, sobretudo, motivadas para
aprender. Ao terem garantidos os espaços para suas falas, para escutar e
refletir a partir das falas dos outros, enriqueciam a aula num círculo de voz
que ecoava e encadeava a discussão, podendo reformular e avançar na construção
de seu conhecimento. Por isso, o planejamento detalhado precisava conhecer as
crianças bem como “as potencialidades didáticas, sem renunciar por princípio
a nenhuma delas, e utilizá-las convenientemente quando fosse necessário”
(Zabala, 1998. P.114) na gestão do grupo.
Dessa maneira, valorizou-se a manutenção da identidade do grupo, em
que os alunos se responsabilizam mutuamente e colaborativamente pela
aprendizagem uns dos outros, como acontecia na sala de aula presencial: ligam
os microfones e perguntam “Posso complementar a fala do Luca?” ou “Posso
ajudar explicando do meu jeito para a Lorena?”.
Como na sala de aula presencial, valorizar os tempos e
possibilidades de cada criança na gestão do grupo ampliava as possibilidades de
aprendizagem: o que esperar de cada criança nesse novo cenário? Em qual tempo?
As proposições serão iguais? Como atuar para a diversidade à distância? As
famílias contribuem para as possibilidades de aprendizagem? Precisam de ajuda
para tal? Como garantir a participação e o engajamento de todos numa turma tão
diversa?
Essas foram/são algumas das inúmeras reflexões e questionamentos
constantemente feitos e que orientaram/orientam a ação pedagógica. Um olhar
sensível e atuante tem contribuído para manter as crianças entrelaçadas com a
escola e com a aprendizagem, assim como o diálogo franco com as famílias tem
contribuído para isso também.
Em um contexto tão diverso, no qual a relação entre professor e
aluno é mediada por equipamentos eletrônicos, fios, sinal de internet, sem o
calor do olhar, do toque, da voz, que há em um contexto presencial - que é o
jeito que dominamos saber -, o que é que vai engajar o aluno? No contexto
remoto muitas vezes a sustentação do trabalho depende, além dos equipamentos,
de um adulto que ajude o aluno a organizar a rotina, a instaurar um momento da
escola dentro de casa, que ensine o uso das ferramentas e que, sobretudo,
mostre através do seu exemplo o valor que dá à escola, pois “as atitudes de
outras pessoas significativas intervêm como contraste e modelo para as nossas e
nos persuadem ou nos influenciam”. (Zabala, 1998. p.47)
Embora o contexto remoto possa supostamente favorecer o foco na
aprendizagem dos conceitos, os conteúdos atitudinais, talvez até mais do que
outros, necessitam ser destacados: manter as crianças motivadas e interessadas
pelas atividades escolares, vinculadas aos amigos e às professoras é o que as
fará responsabilizar-se por suas aprendizagens e conseguir sustentar este
formato ao longo do tempo que for necessário - sobretudo com leveza. Por isso,
o foco estaria na relação da criança com a aprendizagem: as crianças querem
aprender? Estão implicadas neste propósito? Estão interessadas na produção do
próprio conhecimento?
(...) a vinculação afetiva necessária para que o que se compreendeu seja interiorizado e apropriado implica a necessidade de estabelecer relações afetivas, que estão condicionadas pelas necessidades pessoais, pelo ambiente, pelo contexto e pela ascendência das pessoas ou coletividades que promovem a reflexão ou a identificação com os valores que se promovem. (Zabala, 1998. P.47)
Além de garantir encontros regulares com o grupo-classe e ações que
visassem cuidar e nutrir a relação com as famílias, outro elemento atuou no fortalecimento
do vínculo e da identidade do grupo: a literatura.
Extrapolaram-se os limites curriculares para acolher o interesse
manifestado pelo grupo em continuar a leitura compartilhada de todos os volumes
de “As Crônicas de Nárnia” (C.S. Lewis).
Dessa forma, juntos e próximos aos personagens, enveredaram
diferentes universos por meio da imaginação e de muitas aventuras, mesmo
reclusos em suas casas.
A literatura também criou contexto, enredo e intimidade para
animadas conversas, já que a falta de viver junto, dividir espaço, conflitos e
cenas do dia a dia escolar, por vezes, poderia causar uma “falta de assunto”,
um esfriamento das relações.
Por fim, neste ou em qualquer contexto, a escola tem o importante papel de atuar na direção de implicar o aluno, com a meta de envolvê-lo intensa e efetivamente com a construção do seu próprio conhecimento. O isolamento social apenas nos convoca a repensar a relação estabelecida com o saber e a mobilizar os sujeitos em torno do propósito primeiro da escola que é o aprender.
Mobilizar é pôr recursos em movimento. Mobilizar-se é reunir suas forças, para fazer uso de si próprio como recurso. [...] Mobilizar-se, porém, é também engajar-se em uma atividade originada por móbiles, porque existem “boas razões” para fazê-lo (Charlot, 2000, p.55).
Neste momento em que
a instituição escolar, as representações dessa instituição e todas suas nuances
e complexidades estão projetadas no vínculo possível com este “espaço” e
resumidas na figura do professor, que sejamos a escola!
Obrigada especial à querida amiga Tati Miho e ao Dani pela revisão do texto. Bom demais o Reescritas poder contar com a colaboração de tanta gente implicada no propósito de fazer circular as reflexões sobre o ambiente escolar.
0 Comentários