O vínculo, o afeto e a implicação com o saber construído via tela


Crédito da foto: Aline Leão


                  Nara Amaral e Giulianny Russo

Esta reflexão começa com uma leitura da situação enfrentada pelas crianças perante o atual contexto de pandemia e aulas online. Foi essa leitura que pautou os princípios que nortearam as decisões e encaminhamentos pedagógicos. Para isso, não poderíamos deixar de apontar as perdas que nossos estudantes sofreram.

Após um breve retorno às aulas com o encontro dos seus professores e sua nova turma, em março de 2020, nossas crianças são, repentinamente, apartadas do convívio escolar.

Embora poucos, os 20 dias letivos que antecederam a interrupção das aulas na escola física foram bastante intensos e fundamentais para todo o contexto adverso de trabalho que estava pela frente: foram dias especialmente voltados para a construção de vínculos afetivos, de confiança para se relacionar, para o aprender entre todos e o reconhecer um ao outro.

E, assim, sem muito tempo para despedidas, as crianças perderam o chão da escola. Perderam o convívio com os amigos. Perderam a rotina. Perderam o brincar, o se relacionar entre pares. Perderam a aprendizagem colaborativa, que traduz o sentimento de pertencimento e identidade dentro do grupo, que motiva e melhora a autoestima. Crianças que também têm aprendido a perder.

O que mais essas crianças não poderiam perder? Como garantir qualquer coisa nesta única possibilidade de encontro que, a partir de então, teríamos?

Elas não poderiam perder a identidade de grupo que havia sido intensamente pensada nos primeiros dias de aula. Por isso, a primeira decisão didática foi a de não separar a turma em pequenos agrupamentos - ainda que houvesse momentos de trabalho com distintas parcerias. A intenção foi a de proporcionar uma dinâmica minimamente semelhante à da sala de aula, possibilitando a “convivência” entre todos, para manter o grupo vivo.

Vale destacar que essa foi uma forma de organizar o processo, dentro das possibilidades vislumbradas e priorizadas no momento, e não desconsidera outros manejos, tão pouco pretende ser o único possível.

A gestão da participação oral ao longo das aulas foi bastante árdua, mas fazer circular a fala nas discussões entre todas as crianças as ajudava a manter-se conectadas às propostas e, sobretudo, motivadas para aprender. Ao terem garantidos os espaços para suas falas, para escutar e refletir a partir das falas dos outros, enriqueciam a aula num círculo de voz que ecoava e encadeava a discussão, podendo reformular e avançar na construção de seu conhecimento. Por isso, o planejamento detalhado precisava conhecer as crianças bem como “as potencialidades didáticas, sem renunciar por princípio a nenhuma delas, e utilizá-las convenientemente quando fosse necessário” (Zabala, 1998. P.114) na gestão do grupo.

Dessa maneira, valorizou-se a manutenção da identidade do grupo, em que os alunos se responsabilizam mutuamente e colaborativamente pela aprendizagem uns dos outros, como acontecia na sala de aula presencial: ligam os microfones e perguntam “Posso complementar a fala do Luca?” ou “Posso ajudar explicando do meu jeito para a Lorena?”.

Como na sala de aula presencial, valorizar os tempos e possibilidades de cada criança na gestão do grupo ampliava as possibilidades de aprendizagem: o que esperar de cada criança nesse novo cenário? Em qual tempo? As proposições serão iguais? Como atuar para a diversidade à distância? As famílias contribuem para as possibilidades de aprendizagem? Precisam de ajuda para tal? Como garantir a participação e o engajamento de todos numa turma tão diversa?

Essas foram/são algumas das inúmeras reflexões e questionamentos constantemente feitos e que orientaram/orientam a ação pedagógica. Um olhar sensível e atuante tem contribuído para manter as crianças entrelaçadas com a escola e com a aprendizagem, assim como o diálogo franco com as famílias tem contribuído para isso também.

Em um contexto tão diverso, no qual a relação entre professor e aluno é mediada por equipamentos eletrônicos, fios, sinal de internet, sem o calor do olhar, do toque, da voz, que há em um contexto presencial - que é o jeito que dominamos saber -, o que é que vai engajar o aluno? No contexto remoto muitas vezes a sustentação do trabalho depende, além dos equipamentos, de um adulto que ajude o aluno a organizar a rotina, a instaurar um momento da escola dentro de casa, que ensine o uso das ferramentas e que, sobretudo, mostre através do seu exemplo o valor que dá à escola, pois “as atitudes de outras pessoas significativas intervêm como contraste e modelo para as nossas e nos persuadem ou nos influenciam”. (Zabala, 1998. p.47)

Embora o contexto remoto possa supostamente favorecer o foco na aprendizagem dos conceitos, os conteúdos atitudinais, talvez até mais do que outros, necessitam ser destacados: manter as crianças motivadas e interessadas pelas atividades escolares, vinculadas aos amigos e às professoras é o que as fará responsabilizar-se por suas aprendizagens e conseguir sustentar este formato ao longo do tempo que for necessário - sobretudo com leveza. Por isso, o foco estaria na relação da criança com a aprendizagem: as crianças querem aprender? Estão implicadas neste propósito? Estão interessadas na produção do próprio conhecimento?

(...) a vinculação afetiva necessária para que o que se compreendeu seja interiorizado e apropriado implica a necessidade de estabelecer relações afetivas, que estão condicionadas pelas necessidades pessoais, pelo ambiente, pelo contexto e pela ascendência das pessoas ou coletividades que promovem a reflexão ou a identificação com os valores que se promovem. (Zabala, 1998. P.47)

Além de garantir encontros regulares com o grupo-classe e ações que visassem cuidar e nutrir a relação com as famílias, outro elemento atuou no fortalecimento do vínculo e da identidade do grupo: a literatura.

Extrapolaram-se os limites curriculares para acolher o interesse manifestado pelo grupo em continuar a leitura compartilhada de todos os volumes de “As Crônicas de Nárnia” (C.S. Lewis).

Dessa forma, juntos e próximos aos personagens, enveredaram diferentes universos por meio da imaginação e de muitas aventuras, mesmo reclusos em suas casas.

A literatura também criou contexto, enredo e intimidade para animadas conversas, já que a falta de viver junto, dividir espaço, conflitos e cenas do dia a dia escolar, por vezes, poderia causar uma “falta de assunto”, um esfriamento das relações.

Por fim, neste ou em qualquer contexto, a escola tem o importante papel de atuar na direção de implicar o aluno, com a meta de envolvê-lo intensa e efetivamente com a construção do seu próprio conhecimento. O isolamento social apenas nos convoca a repensar a relação estabelecida com o saber e a mobilizar os sujeitos em torno do propósito primeiro da escola que é o aprender. 

Mobilizar é pôr recursos em movimento. Mobilizar-se é reunir suas forças, para fazer uso de si próprio como recurso. [...] Mobilizar-se, porém, é também engajar-se em uma atividade originada por móbiles, porque existem “boas razões” para fazê-lo (Charlot, 2000, p.55).

Neste momento em que a instituição escolar, as representações dessa instituição e todas suas nuances e complexidades estão projetadas no vínculo possível com este “espaço” e resumidas na figura do professor, que sejamos a escola!



Obrigada especial à querida amiga Tati Miho e ao Dani pela revisão do texto. Bom demais o Reescritas poder contar com a colaboração de tanta gente implicada no propósito de fazer circular as reflexões sobre o ambiente escolar.




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